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terça-feira, 2 de julho de 2013

O Acordo Ortográfico e a essência das coisas

A partir de hoje passo a escrever segundo o Novo Acordo Ortográfico. E porquê? Porque, ao contrário do que se diz por aí, é fácil. Não vai destruir a minha vida, não vai mudar quem sou e, principalmente, não vai fazer-me «falar como os brasileiros».

Eu percebo o apego das pessoas àquilo que consideram os símbolos do seu país, mas, sinceramente, Portugal tem uma taxa de analfabetismo superior a 5%, segundo os últimos Censos e, estar a lutar contra o Acordo Ortográfico quando meio milhão de pessoas ainda nem sabe escrever só me faz pensar em querer que toda a gente coma brioches quando a maioria ainda não tem pão. Não me interpretem mal, sou uma defensora acérrima das diferenças de opinião, acredito que é a oposição entre opiniões que faz avançar o Mundo, mas gostava que toda a gente pudesse ter as ferramentas para exprimir as suas.

Não quero defender nem atacar o Acordo, e, mesmo que quisesse, não o conseguiria fazer. A escrita, para mim, configura-se simultaneamente como o meu objeto de estudo e ferramenta, e imagino que eu olhe para a ortografia como um ginecologista olha para os genitais femininos: não há mística, é um sistema com uma função, formado por partes, pode apresentar ligeiras variações, mas de resto, é tudo muito sartriano; as coisas são o que são e por detrás delas não há nada.

O que se passa com o Acordo é que as pessoas têm tendência a romantizar. Aqui há uns tempos vi um documentário sobre a essência das coisas. Nesse documentário, um investigador tentava perceber a tendência das pessoas para atribuírem uma «essência» a objetos inanimados. Apresentava aos sujeitos uma caneta que dizia ter sido, por exemplo, do Hemingway (estou a inventar, não me recordo das pessoas que ele usou), e as pessoas pegavam-lhe, olhavam-na, mexiam-lhe. Depois apresentou uma camisola que dizia ter sido do Ted Bundy. As pessoas pagavam-lhe com a ponta dos dedos como quem mexe em alguma coisa que fede e passavam-na o mais rápido possível ao outro.

Acho que isto acontece com a ortografia, as pessoas que se sentem muito apegadas a ela não conseguem evitar sentir a sua essência, a forma como transporta a História e a aura dos grandes escritores. Não vou dizer que essa carga me é completamente indiferente, mas penso assim: quanto mais longe a forma como escrevo está de como se escreveu, mais fascinante é. Quem é que ia ler as crónicas do Fernão Lopes, se não fosse pelo vislumbre de um tempo distante?
A evolução e a mudança fazem a História. E há alguma coisa melhor do que isso?



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